Não Tão Amarelo, Vicente
Olhou com perplexidade para o seu lado esquerdo. Três quartos e meio de existência separavam-na novamente daquele homem. Ele observava cegamente o quadro que tinha na sua frente, não deixando transparecer nenhum sinal de reconhecimento em relação ao frágil transtornado corpo daquela mulher que via num segundo todas as suas defesas a serem estilhaçadas e remetidas a uma vaga miragem de poeira etérea.
Sílvia concentrou-se na abstracção da nulidade do pensamento de forma a conseguir equilibrar-se nos saltos que lhe anulavam a tarefa de ter de se agigantar perante terceiros enquanto a mão trémula dançava com uma flute de champanhe transbordante de algo que não se assemelhava a morna felicidade mas talvez a uma não temperada reviravolta do destino.
Passou a mão pelos acastanhados caracóis enquanto sentia no seu interior estalar uma capa que pensara ser dura, resistente, capaz de a fazer avançar contra todas as vagas e marés da vida. Oh, que tonta fora, reconhecia naquele momento em que via outra vez os medos e dúvidas, os desequilíbrios e hesitações a saquearem-lhe a sua realidade de uma forma demasiado crua e explícita para poder sequer acreditar nela.
Odiava as apresentações de arte moderna que tinha de regularmente promover na galeria de que estava encarregue, mas uma percentagem igual a 50 na venda de uma qualquer obra era mais do que um bom incentivo para naquele tempo de crise tolerar aquele vai e vem de corpos conhecidos e rotinados, que falavam, riam, bebiam, indiferentes aos três quartos e meio de vida invisíveis que separavam Sílvia de um presente, de um passado e, cravejavam-lhe os olhos de lágrimas, de um futuro que sabia inexistente.