Desafio de Escrita dos Pássaros #2.4 - Rivastigmina
Guilherme adorava o Google!
Todos os dias passava horas sentado à frente dele, deliciando-se tanto com as descobertas mais cientificamente importantes, como por exemplo os benefícios do chá de hibisco ou a velocidade à qual um piolho consegue nadar, como com as mais triviais, nas quais se incluía a razão do céu ser azul ou o número de selfies que o Presidente da República já tinha tirado desde o início do mandato.
Para Guilherme o Google era uma espécie de feiticeiro digital, que lhe adivinhava os pensamentos antes mesmo dele os teclar na zona de pesquisa.
Bastava escrever Como comer um Burrito que o Google fazia-lhe aparecer instantaneamente sem ficar todo sujo, que era exactamente o que ele queria saber. Só podia ser magia!
Alguns colegas já lhe tinham apresentado outros motores de busca, como o Bing ou a Raposa de Fogo, mas Guilherme só queria o Google.
Apesar das horas infindáveis que dedicava a pesquisar tudo e mais alguma coisa, havia um tema que lhe aquecia de forma especial o coração.
Matilde de Leça Abradeu.
Filha de uma lenda do teatro português, Matilde era actriz, apresentadora, Embaixadora da Boa Vontade da Unesco e dava aulas de pintura para crianças com necessidades educativas especiais.
Matilde era sempre a primeira pesquisa do dia mal acordava, e era sempre a última antes de adormecer.
Adorava ver os artigos onde ela aparecia sempre linda, com uns olhos do tamanho do mundo e um sorriso do tamanho do universo, ria-se com o seu humor mordaz quando a ouvia numa entrevista para um canal de rádio, suspirava quando a via nas viagens pelo mundo a espalhar humor e bondade.
Só não gostava das fotos onde pousava com as irmãs, Picó e Muxaca, ambas mais velhas e com menos de metade da beleza e talento de Matilde, e das notícias antigas onde aparecia com o ex-namorado, um playboy brasileiro que a trocou por um deputado europeu.
Guilherme sabia que já tinha sido há muitos anos, mas a lembrança da existência de um homem que tocou no corpo da mulher que venerava sem a merecer deixava-o azedo de rancor.
Naquele dia seguiu o mesmo ritual: acordou, espreguiçou-se e pesquisou no Google o nome de Matilde, mesmo antes de preparar uma caneca de café ou de limpar as remelas dos olhos.
Os resultados que o motor de busca lhe devolveu deixaram-no sem pinga de sangue.
Aparentemente aquele era o dia em que Matilde se casava, e todos os meios de comunicação falavam disso.
Havia quem descrevesse o local da cerimónia, outros que detalhavam a lista de celebridades convidadas e quem se questionasse se no Copo-de-Água haveria uma fonte de marisco vivo ou se optariam por um gigantesco fondue de queijo azul.
Os comentadores virtuais apostavam entre si sobre qual teria sido o estilista escolhido para conceber o vestido da noiva ou quem é que iria ter a tarefa de transportar as alianças, enquanto que o site de uma revista cor-de-rosa garantia a pés juntos que uma das convidadas, solteirona há mais de três décadas, tinha aprendido de forma intensiva Krav Maga e Capoeira só para se certificar que seria ela a apanhar o bouquet.
Guilherme desligou o computador com os olhos completamente esbugalhados.
Não, aquilo não podia ser verdade. O Google estava errado, só podia estar errado, repetia para si mesmo enquanto puxava furiosamente tufos de cabelo.
Como é que ele tinha sido capaz de se esquecer do dia do seu próprio casamento?